Tem-me custado escrever este post

                                                                                                                                                      Black Swan, 2010

Nunca enchi a boca para dizer que sou invencível. Nunca achei que a minha família o fosse. Pelo contrário, sempre soube e fui sabendo das fragilidades e dos telhados de vidro mais próximos, dos erros com que se aprende - se não quem os comete, quem com eles lida -, das injustiças que acontecem e que nunca se ultrapassam, e dos defeitos que, sendo do mais comum que há, todos nós temos. Cresci assim e tudo isso faz parte de quem hoje sou. Limou-me os traços da personalidade que sempre me manteve afastada de tudo o que é prejudicial para a saúde, do tabaco à heroína, e do excesso de álcool à ditadura dos adolescentes. Não dei "uma passa" porque todos na escola davam, e experimentei o primeiro e último cigarro em casa, e a seguir contei à minha mãe. Uma das minhas mais fortes recordações da viagem de finalistas envolve uma casa de banho, uma rapariga praticamente inconsciente de tão bêbada e um rapaz que teve que lhe colocar dois dedos na garganta, para que ela pudesse vomitar e voltar a ficar bem. Não foi comigo, mas a imagem marcou-me como se tivesse sido. Já vi uma das pessoas de quem mais gosto deixar-se engolir por um buraco tão escuro que até hoje fico surpreendida de cada vez que o vejo e percebo que já passou.

Nunca enchi a boca para culpar ninguém. Nunca achei piada aos excessos e às substâncias prejudiciais que se tomam em exagero, só porque é "fixe" ou apimentam uma festa. Mas nunca me opus, nunca comentei, nunca abri a boca sem ser para dizer "para mim não, obrigada". Compactuei, fechei os olhos e abanei a cabeça. Hoje, acredito que devesse ter gritado muito de todas essas vezes, porque se há coisa que nunca fiz foi admitir o quanto isso me tira do sério, o quanto todas essas atitudes me fizeram sentir falta de pessoas que mal conheci, ou sofrer por aqueles com quem convivi.

Hoje, revolta-me ouvir falar de condutores embriagados, de pessoas irresponsáveis, de adolescentes que se julgam com super poderes. Dá-me a volta ao estômago saber de pessoas da idade do meu irmão mais novo que vão para o hospital em coma alcoólico desde os 11 anos e que isso é "normal". Quanto mais não seja, porque já vi a ambulância que chegou à festa da cidade, aquela dada em local público, num espaço com 90% de menores como clientes, em que são servidas cerveja e vodka como se não houvesse amanhã, sem uma única pergunta. E apetece-me dar dois pares de estalos a todas estas pessoas, porque para mim não é desculpável viver assim, "só" porque não se prejudica mais ninguém, até porque isso nunca acontece. A história do "bebe para aí até morreres, é contigo, mas não conduzas bêbado porque matas alguém" nunca me pareceu fazer sentido. Onde ficam todos aqueles bocadinhos de nós que morrem quando não podemos ajudar aqueles que queremos? Aqueles pedaços que perdemos sempre que vemos um amigo desaparecer dentro do seu próprio corpo? A dor que vem de um coração que deixámos de ouvir? Onde fica tudo isso quando é "só" uma pessoa a fazer mal a ela mesma? Quando não houve nenhum embate numa família de desconhecidos que agora chora um atropelamento? O embate que sofremos tem que ser menor porque é connosco?

Hoje, queria muito poder esmurrar a maioria destas pessoas, destas que eu conheço e que vejo assumir os mais estúpidos, idiotas e inconscientes comportamentos. Queria muito atingir-lhes fisicamente até perceberem que faz doer. E a todos os outros também, a todos aqueles que eu fosse encontrando pelo caminho e que fosse vendo auto-degradarem-se por iniciativa própria. Não por terem uma doença rara, não por serem do mais saudável que há e acordarem um dia com um cancro ou outro problema auto-imune sem solução, não por terem que lutar num combate que não travaram. Queria poder fazê-los sangrar até se lembrarem que por dentro o vermelho que corre é igual para todos, todos nós que somos igualmente mortais. Porque o que me enerva e me deixa com raiva é saber que há quem escolha deliberadamente morrer mais rápido. Geralmente, são os mesmos que não ouvem quem os rodeia ao longo do processo e que se esquecem fazer também parte de outros.

Há outra história que me dá voltas ao estômago; é aquela que contam os das angariações de fundos ou os dos anúncios de solidariedade, aquela que nos diz que "as coisas más não acontecem só aos outros". É, obviamente, uma mentira mal contada. As coisas más  acontecem aos outros, única e exclusivamente. A mais ninguém, nunca. O problema, talvez, é que os "outros" somos todos nós, todos aqueles a quem isto ou aquilo ainda não aconteceu. E o ainda pode até nunca chegar mas, nesse caso, somos  muitíssimo sortudos e nem o sabemos. É por isso que antecipá-lo com desafios, comportamentos e provocações constantes não pode ser senão demasiado parvo.

Tudo muda num segundo sem que possamos fazer nada, quer tenhamos ou não coragem para o enfrentar, quer sejamos ou não suficientemente humildes para o admitir.  
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