Tive um pesadelo horrível e agora não consigo dormir

Sonhei com detalhes e pormenores de ontem que autenticaram os acontecimentos seguintes de uma forma irreal.

Lembrei-me da chegada a casa do Algarve, já de noite, já depois de o ter deixado em casa. Mas vinha a pé - ok, esta parte talvez seja disparatada, dados os 70 quilómetros que nos separam. Cheguei à minha cidade e passei por aquela rotunda familiar, aquela que toda a gente que por cá passa reconhece. Avistei um louco ao longe, pequeno e vestido de branco, com uma espada tão brilhante que só de perto me apercebi ser real. Era enorme e ele erguia-a no ar, abanado-a com força de um lado para o outro, enquanto gritava para as pessoas: "tens portátil?". Quem, como eu, respondia que não, ele deixava seguir o seu rumo. Para as outras (eram só mulheres), ou para quem mentisse, talvez a situação fosse outra, porque uns passos à frente havia no chão uma poça de sangue não tão pequena assim. O pior estava para vir.

Surgiu um jipe, daqueles que fazem lembrar os de recruta militar dos filmes. De lá saíram vários "loucos", todos com as mesmas espadas. Tudo o que era mulher foi enfiada dentro, sob pena de se transformar na próxima mancha de chão. Levaram-nos para um restaurante. Aqui os detalhes estão mais vagos e a passagem incompleta. Lembro-me de alguém que pediu para estar quieta e para me habituar, porque, a partir de agora, a minha vida iria ser sempre assim. Quase toda a gente lá dentro sabia já bem de que se tratava o rapto e, inexplicavelmente, tendo em conta os acontecimentos seguintes, estavam calmas.

Falaram-me dos "chefes". Ali, só a Joana Simões ou o Ricardo Carriço (não era o actor, mas um colega meu da primária a servir-se-lhe do nome). A maioria preferia a Joana que, sendo igualmente um monstro, era também mulher. Não que me parecesse que isso tivesse alguma relevância, dado o cargo que encetava. Para elas, porém, a urgência de acreditar numa qualquer empatia era o que as fazia resistir. Eu escolhi o Ricardo. Não de ânimo leve, ou com muita vontade, mas porque assim que lhe pus os olhos em cima ele acenou e fez sinal para me juntar ao seu grupo, colocando-me atrás das costas. Tal e qual como tínhamos feito anos antes, ao brincar à linda-falua. Achei que um rosto conhecido me iria confortar. Em vez disso, a maldade que lhe sentia só me deixou mais apreensiva. Ora ali estava alguém que eu nunca na vida acharia poder transformar-se no ser abominável que se transformou.

Então era assim: uma vez "apanhadas" na rua, a nossa única liberdade era escolher o "chefe". Toda a minha vida, com os contornos que a preenchiam, passava agora a estar sobre o seu comando. Perguntei às raparigas que me acompanhavam quantas vezes eles iriam aparecer inesperadamente e como me poderiam obrigar a juntar-me a eles, se estavam a dizer que depois do jantar me deixavam em casa. Riram-se e perguntaram-me como é que eu achava que eles me iam deixar em casa. "Já têm a tua morada, não sejas ingénua. Eles aparecem a qualquer hora, a qualquer altura do dia. Vai haver momentos em que terás que mentir e inventar as desculpas mais idiotas para ires com eles. Mas irás fazê-lo. Terás também de roubar os teus próprios pais. Eles estão sempre acompanhados dos homens das espadas e tu, tu agora és a sua mais nova marioneta. E  não te enganes: qualquer pessoa na rua a quem tentes pedir ajuda pode ser mais um de nós".

Acabámos de comer - eles e elas, porque eu não consegui - e num gesto de uma condescendência mórbida levantámo-nos para ficar paradas, em frente aos nossos "chefes". Seguia-as e imitei-as, sempre de cabeça baixa, como faziam. Aguardámos vários minutos em pé, até que por fim olhassem para nós. Riram-se um para o outro e fizeram pouco da situação. "Querem ir para casa, as meninas? Ora vão lá", começou a Joana. Via-as sair apressadas e deixei o meu olhar cair sobre o Ricardo. "Tu também podes, vai lá antes que estranhem a tua ausência. Vemo-nos por aí". "Vemo-nos por aí", aquela deliciosa mistura de palavras deu-me o alento infantil de quem vê nascer um raio de esperança nas mais pequena das frases. Elas, que esperaram por mim à porta, garantiram-me que não seria tão aleatório ou distante como a expressão fizera crer.

Corri para casa e quis chorar enquanto o fazia. Não consegui. Fiquei presa no debate mental entre contar ou não aos meus pais: prepará-los, protegê-los e, a seguir, ir à polícia. Exactamente o que me disseram para não fazer. Mas cheguei a casa e corri para o meu pai, que estava à conversa com o meu tio. Não quis saber da visita e contei-lhes tudo no momento, com as palavras a atropelarem-se e sem conseguir verter uma lágrima. "Vamos já à polícia", ordenou o meu pai. "Tenho medo que faça parte do mesmo grupo, e que depois se vinguem em vocês", contrapus. "Cá em casa, eu vou estar atento. Lá fora é que me assusta, sempre que saíres".

Não houve nenhum momento de clímax para acordar. Recordo-me de andarmos de um lado para o outro e de eu, de repente, abrir os olhos e puxar mais o cobertor para mim, como se isso pudesse proteger-me. Não encontrei logo o telemóvel e entrei em pânico. Ainda não me mexi do mesmo sítio, excepto para me inclinar ligeiramente para o portátil. É uma parvoíce, eu sei, mas ainda sinto um friozinho nas costas e uma réstia do medo de um sonho. Não sei bem se estava em sono profundo ou semi-acordada e era a minha cabeça, e propensão para as histórias, que continuava a elaborar o episódio que surgiu no meu inconsciente. Na realidade, não importa, porque preferia que isto nunca tivesse acontecido. Ainda tenho o coração rápido e o sentimento de impotência aliado ao medo. A sensação de beco sem saída e da vida que muda em dois segundos, sem sabermos bem como. Faço sempre uma coisa muito estúpida quando perco um metro: pergunto-me o que fiz para isso acontecer e revejo mentalmente os meus passos. "Se não tivesses procurado a pastilha....", "se não tivesses atendido a chamada", "se não tivesses apertado o atacador". Hoje, e porque a viagem de ontem acabou por durar uma eternidade, foi cheia de curvas e contracurvas, caminhos e voltas extra, só pensava: "e se tivesses saído uns minutos mais tarde? se não o tivesses deixado em casa e o tivesses trazido contigo? se não tivesses feito o desvio?".

Daqui a menos de duas horas é altura de despertar e eu ainda não me vejo a dormir. Vai ser bonito,vai. Ainda por cima, já sinto a cabeça pesada.
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