Esta noite sonhei que o meu carro era raptado. Raptado, sim, era isso que eu dizia às pessoas. Não estou em absoluto acordo com o Pires, o meu inconsciente, mas ele lá sabe que palavras escolhe usar. Creio que era por eu estar dentro da carroçaria quando tudo aconteceu. Então vamos lá começar pelo princípio: O despertador toca, eu acordo. Visto-me e vou fazer um bolo. Um bolo em pleno dia de trabalho. Um bolo quando devia estar a fazer-me à estrada. Os meus pais acordam, chamam-me a atenção e eu ignoro, como se ficar a vigiar um forno em vez de estar a chegar à empresa fosse perfeitamente normal. Lá saio de casa, a muito custo, sabendo que estou tão atrasada que é impossível chegar a horas; mesmo assim, corro enquanto atravesso a estrada para chegar ao carro. Acontece da porta do lado do condutor não abrir. Tento do lado do pendura mas imediatamente me apercebo de que será uma tentativa vã: um chico-espero tinha estacionado tão, mas tão perto que não podia abrir as portas do meu carro sem bater no dele. Experimentei a de trás e funcionou. Ok, esta parte não sei explicar, mas compreendam, isto não é uma coisa da minha autoria. Entro para o carro, atiro as chaves e a mala para o banco da frente, tentando desenvencilhar-me de toda a tralha que trazia comigo para me conseguir mover. É nesse momento que um estranho entra para o meu carro - sim, concordo: como é que agora a porta já abria? Novamente: se fosse eu a pensar nisto não teria tantas incongruências - senta-se no assento, coloca as chaves na ignição e ala que se faz tarde, comigo lá dentro, pois está claro. Só me lembro de enviar uma mensagem a uma colega de trabalho que dizia algo tão prático, oportuno e bonito quanto: "Vou chegar atrasada, o meu carro foi raptado".
Acordei. Eram 5h40 da manhã. Adoro acordar e saber que ainda posso dormir, sobretudo porque sou daquelas pessoas que têm a irritante mania de despertar 10 a 15 minutos antes do tiriri do telemóvel, para se sentirem a criatura mais infeliz do mundo por terem perdido uma quantidade considerável de segundos de descanso. Virei-me para o lado e consegui adormecer tão rapidamente que nem me dei conta.
Parte II
Estou na praia, com a minha mãe, na Costa da Caparica para ser mais precisa. Eu raramente vou à Costa. Muito, muito raramente; muito menos em pleno Verão. Mas pronto, lá estou eu a chafurdar na areia e a brincar com baldes. Não vos disse? Tenho 5/6 anos e um chapelinho branco às flores, adorável. De repente estou no Algarve, numa praia que nunca vi, e ainda assim com o bar da praia que costumo frequentar. As mesmas escadas toscas de madeira, a mesma falésia, a mesma água que lembra uma lagoa. Devemos estar em Agosto porque não há espaço para pôr os pés. Ouço um grito agudo. A minha mão agarra-me pela mão e corremos em direcção ao som. Uma senhora com um cabelo muito comprido, uma pele escura e uns olhos enormes carrega a filha, sensivelmente da minha idade, o colo. "Também tentaram raptar a sua menina?" - pergunta a minha mãe. "Sim!", responde a outra mulher, ainda com lágrimas nos olhos. "Mas eu cheguei antes, consegui salvá-la". "Tentaram tirar-me a minha na Caparica, por isso fugimos para aqui. Eles não podem continuar com isto. Isto tem que acabar" - responde a minha mãe. E assim, sem mais nem menos, com a sua túnica branca e segurando o chapéu de palha que envergava, para não fugir com o brisa que já se fazia sentir, dirigiu-se apressadamente ao nosso toldo e tirou uma foto enorme da sua mala. Neste sonho, ou o que quer que seja, a minha mãe é uma fotógrafa famosa. Num passo que permanece acelerado, e algo furioso, chega aos degraus que a conduzem ao bar onde outros dois fotógrafos - não sei como lhes sabia a profissão - a aguardam. Eu vou atrás, curiosa. Todavia, paro a meio, assim que me apercebo da animosidade no ar. Eles agarram-na pelo braço e eu sinto que algo não está bem. A meio das escadas que ainda não subi grito pelo meu pai que olha para mim desde o toldo e, enquanto lhe aceno entusiasticamente com uma mão, exibindo um sorriso forçado que o faria suspeitar, faço um sinal discreto para que venha ter connosco. De repente ouço um tiro, dois e três. Toda a gente começa a fugir na praia. Desço as escadas e subo para um parque de estacionamento, por uma duna de areia que me prende os pés e me torna mais lenta. Os fotógrafos gritam: "Verão, vem a nós Verão, é a ti que queremos". Sei que se estão a dirigir a mim, mesmo sem perceber o porquê do nome de estação. "Não, Inverno não. Não, Outono não". Continuo a ouvir os seus berros e disparos. Sei que estou encurralada quando uma senhora de idade me dá a mão e me afasta o cabelo da cara, dizendo com meiguice: "Vem, já não à volta a dar. Não te preocupes, eu fico contigo. Vou ser a Primavera!". É nesse momento que o meu pai aparece. O meu pai que é o Jim, personagem que faz de marido de Melinda Gordon, na série "Ghost Whisperer - Em contacto". Começa a bater neles todos, estilo Rambo e eu, estupidamente confiante, solto a mão da senhora e vou bater neles também. Todos começam à pancadaria e o meu despertador toca. E pronto.
Fico uns segundos na cama a ponderar a loucura de que devo estar à beira.
Parte III
Saio de casa meio à cautela. Sim, eu sei que foi só um sonho (bem, dois) mas o efeito ainda não me passou. Até espreitei para os bancos traseiros do carro assim que entrei. É claro que antes de lá chegar apanhei com uma carga de água em cima - de mim e da torrada que estava a comer e foi feita em papa directa para o contentor. E isto logo a seguir a ter dito algo como: "Bem, ao menos hoje não chove"; sendo que pouco depois de entrar no carro parou. Nem dei uso aos pára-brisas acabados de ligar.
A princípio pensei que era só uma mensagem do Pires que me alertava para ser responsável, ainda que num estilo infantil: "Se te pões a brincar em vez de ires trabalhar acontecem coisas feias". Agora, tenho para mim que alguém me anda a tentar dizer alguma coisa.