Eu e os cães


Desde pequena que tenho cães. Na realidade, tive dois (duas, para ser mais precisa) e convivi com outros tantos. Ficou por aí, porque ambas morreram, como tinham que morrer, de velhice. Mas nem por isso deixou de ser menos doloroso. E, claro, aos 16 anos não há muito que possamos fazer que não seja chorar baba e ranho e resignar-mo-nos ao facto dos nossos pais não (nos) querem (fazer) passar por tudo de novo. Logicamente, a paixão assolapada por cães de grande porte só veio impossibilitar ainda mais a coisa. Não morávamos num apartamento, mas o pequeno quintal nunca seria, nem de perto, nem de longe, o que um Serra da Estrela ou um São Bernardo poderiam merecer.

O tempo foi passando e as minhas interações limitaram-se às festas aos cães das amigas e familiares, e aos olhares mais demorados nas montras das lojas. Nunca fui pessoa de querer ir tocar e dar beijinhos aos animais de desconhecidos, que passam na rua e para os quais parece haver uma atração inexplicável de muita gente. Nunca me chateei muito com a decisão do poder paternal. Mas também nunca escondi que, uns anos mais tarde, assim que estivesse de partida, mais do que mobília, procuraria um cão. E assim foi, mesmo sem teto definido, encontrei exatamente o que sempre quis no Olx, esse ponto de passagem romântico e cheio de possibilidades. E logo surgiu a primeira barreira (para os outros, claro; é sempre para os outros): Então mas vais pagar por um cão quando há tantos abandonados a precisar de ajuda?

Pois vou. Não tenho qualquer problema com isso. As duas cadelas que tive foram dadas, e os filhotes da segunda, cocker com pais de competição, dados foram. Mas nunca percebi a objeção de toda a gente em relação ao comportamento contrário. Então mas e se ninguém comprar os cães que estão para venda, o que lhes acontece? Se, de repente, toda a gente deixasse de comprar cães? Sim, os donos poderiam deixar de os criar. Está certo. Mas eu não vou comprar um cão do futuro. Vou comprar um cão de agora, que já nasceu. E que precisa e tem o mesmo direito a um lar que todos os outros. Se ele fosse comprado por outra pessoa, abandonado três anos depois e atropelado até se desgraçar completamente, então já o poderia adotar? Já seria correto e eu uma boa samaritana? Senhores, o cão é exatamente o mesmo. E da exata mesma forma que compro, é só uma questão de espaço e disponibilidade (temporal e mental) para adotar, se assim o quiser. Uma coisa não invalida a outra.

E há, claro, todo um conjunto de fatores que pesam: eu procurei um cão que possa ser habituado, desde muito pequeno, a ficar sozinho durante várias horas. Que não esteja acostumado a estar sempre aos pulos e rodeado de pessoas. Com uma personalidade relativamente tranquila e uma capacidade de adaptação mais sólida. Um cão de porte pequeno que, apesar de quase sempre estar associado a um sistema nervoso pior do que de qualquer outro, se saiba menos agitado. Que não vá ficar a ladrar, num tom fininho e desesperante, todo o dia para os vizinhos. Sou esquisita por mim, pelo bicho e pelo respeito às pessoas que me poderão rodear. Porque sei que não vou alugar um T5 com terraço daqui até ao mar. E mimimi que conhecem uns cães mesmo fixes que se portam espetacularmente e que estão no canil apenas à espera de amor e carinho. Que parecem responder a todos os meus requisitos e ainda saem de borla. Conseguem garanti-lo? Porque a disponibilidade para adotar deve ser nada menos do que total e sem restrições. E eu tenho-as.

Na minha singela, a adoção animal deveria ser considerada com a mesma seriedade que a adoção de uma criança. E este tipo de pensamento, que por acaso é o meu – e me torna pouco isenta na afirmação seguinte – diz-me muito mais que se gosta a sério de animais, do que o das pessoas que, euforicamente, os tentam despachar para todos os lados. É preciso estarmos preparados para lidar com a história do cão adotado e para nos adaptarmos a esse animal, em vez de ser ele a adaptar-se a nós. Não estou a dizer que a vida não muda quando os temos, venham de onde vierem. Há os passeios, as vacinas, os banhos e as rotinas que passam a integrar as nossas. Já os tive, lembram-se? Não venham os puritanos misturar conversas. Mas a vida não muda ao ponto de não poder ter crianças em casa porque tenho um animal traumatizado que não deixa que lhe toquem, ou de ter de dormir de luz acesa porque a escuridão o assusta, como já vi acontecer. E como já vi não passar, apesar de todas as tentativas. Se merecem um lar? Claro que sim. E três vénias seguidas a quem verdadeiramente lhos proporciona, sem qualquer limite e com toda a paciência do mundo. Mas eu também mereço ter direito a fazer essa opção. E se não me sentir preparada para isso, ou se sentir que não tenho condições – porque não tenho aos mais diversos níveis – ninguém tem nada a ver, nem nada que julgar. Porque nenhum cão deve ser minimizado, muito menos com o argumento monetário, apenas por não ter sido ainda sofredor o suficiente para ser caso de piedade e, portanto, merecedor da minha atenção. Peloamordedeus. Custa-me ainda mais perceber e interiorizar esta lógica porque vem geralmente de pessoas ligadas a associações de proteção que, supostamente, deveriam ser as primeiras defensoras de um amor incondicional pelos animais, independentemente das suas características e condições. Não sei como se vive a situação noutros países. Aqui, todavia, não deixa de ser incrivelmente português (e eu nem tenho por hábito lembrar-nos pelo aquilo que temos de pior). Mas é a apologia do coitadinho para todas as situações. A velha conversa do dever de ajudar. Quando a ajuda real não obrigatória nem da conta de absolutamente ninguém.

Para o mesmo peditório entram os apelos que nos chegam em todas as redes sociais e caixas de e-mail. Mas essa é conversa para post de continuação, que este já vai longo.
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