Há coisas do diabo...

                                                                                Natalie Portman

Ando há meses para deixar no porta-luvas os papéis do seguro do carro. Há tanto, tanto, tanto tempo que me convenci de que ainda não os tinha guardado e que continuavam em casa, cá pelo escritório. Por isso mesmo, quando hoje saí para o trabalho, vinda de uma noite mal dormida, daquelas em que acordo várias vezes a pensar nas coisas que me faltam fazer e a sentir pontadas de ansiedade; fui todo o caminho a pensar que qualquer dia ainda era apanhada pela polícia, que me devia deixar de brincadeiras e desafios à sorte e que à noite, assim que chegasse a casa, tratava de tudo. Fiquei preocupada, andei o dia a pensar nisso. Foi manhã e tarde de cisma sem explicação, sem motivo ou razão.

Pois que assim que voltei ao estacionamento, decidida a chegar a tempo ao Mestrado e a aproveitar a última aula da cadeira, fiquei zonza, quieta e semi-parva no meio da estrada, a olhar para um lugar outrora ocupado pelo meu carro. E olhei, pensei que estivesse confusa, esquecida e baralhada - não é, de todo, algo impossível - e andei às voltas, à procura de algo que sabia que não iria encontrar. Porque hoje lembrava-me, lembrava-me perfeitamente de onde tinha deixado o carro. Dei 20 cêntimos a um homem que apontou o espaço no estacionamento, a um homem que eu nunca vira por lá, que não é zona onde costumem aparecer arrumadores a pedir moedas. Ele riu-se, eu desejei-lhe bom dia, estendi-lhe o dinheiro e não olhei mais para trás.

Talvez assim compreendam como consegui ficar minutos a fio a olhar para um espaço onde agora estava outro carro. Talvez assim se perceba que me tenham vindo perguntar se algo se passava. Só assim se pode registar o meu espanto e emoção quando voltei a ver o meu pequenino, preto, cheio de batidelas, sem um "S" no modelo e com as manias que só ele sabe ter. Ainda ontem o meu pai dizia que só se dá valor ao que já não se tem. E é bem verdade. Eu nem quis saber do que o polícia dizia, só parei para ouvir quando me atirou um papel para a mão, pediu que assinasse e me deixou ir à garagem buscar o carro. Isto tudo porque, afinal de contas, tinha os documentos todos em dia e, sem me lembrar, até já os tinha colocado no porta-luvas. De outra forma, viria para casa a pé. Não muda o desenvolvimento da história, nem foi nos moldes de operação stop que previa, mas a verdade é que passei o dia a pensar nos papéis, convicta de que algo poderia hoje acontecer. Estranho, certo?

Nota: Quando o vosso carro desaparecer, sem deixar aviso, pista ou morada de devolução, telefonem para os reboques. É certo e certinho: quase sempre estão por lá mais de cem euros à espera de vos serem cobrados.
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