Marés Vivas de sofá

Lembro-me perfeitamente da forma descontraída como me fazia de irresponsável. Estava intimamente ligada, como não poderia deixar de ser, à ingenuidade própria da idade, que sempre me fez crer ser uma recém-adulta espectacular, daquelas com pinta, que vivia para o momento e que respirava aventura. Não raras vezes cedi a impulsos parvos de que não me arrependo nem um pouco. Porque, não se constituindo como os melhores momentos da minha vida, são daqueles por que, em alturas de nostalgia, me conseguem fazer sentir muita saudade. Daqueles em que, com amigas, olhei para um fim de semana como uma tela em branco, e ao mesmo tempo repleta de possibilidades. De quando nos perguntávamos para onde haveríamos de ir sair, até que alguém - eu -  respondesse algo aparentemente estapafúrdio como "no Algarve há uns bares fixes", e todas nós trocássemos olhares e risinhos nervosos, que nada mais diziam se não um "bora lá". E íamos. Ou de quando se decidia, em madrugadas quentes já para lá da ponte, que o pequeno-almoço deveria ser tomado no Porto. Porque mesmo quando eu não ia, e nesta última eu não fui, as aventuras eram sempre um bocadinho minhas também, que as acompanhava por mensagens, toda a noite, por cima da almofada. Ou de quando nos escapávamos para a piscina, lá bem no sul, e tínhamos a lata de atender os telefonemas aos pais, fingindo-nos 200 quilómetros mais perto. Dos acampamentos em pleno inverno, que terminavam rumo a uma casa, pelo meio de uma serra e com muitas horas de caminho, para finalmente percebermos que não tínhamos a chave connosco. Das amizades inesperadas que se criam em dias de festa, quando invadíamos a casa de, por exemplo, um ex-namorado e seus colegas de apartamento, de que nunca tínhamos ouvido falar, mas que nos dançavam em cima da mesa da sala, quando já dormíamos, com a alegria de quem encontrou o álcool nessa noite. O dinheiro arranjava-se sempre. E a disponibilidade também. Hoje é tudo mais complicado, tudo mais pensado e, no fim, tudo menos feito.

Hoje, quando ligo para a minha principal companheira de touradas e digo "vamos até lá acima, vemos os concertos e voltamos na mesma noite", não consigo não pensar antes "espero que ela não queira, que assim não sou eu a não querer". Porque entretanto já fiz as contas ao ordenado, e às semanas que faltam até voltar a receber. A quanto se vai gastar em gasolina e no cansaço que vou sentir. Em como vou querer dormir e não voltar de madrugada. Ou na forma estourada como iria lá chegar, depois de 3 dias da semana de cama, com uma valente amigdalite, e dois dias seguidos a recuperar trabalho. Hoje, penso logo no que vou jantar, se levo marmita, se chego a horas, se não é melhor compensar ao almoço e pedir no trabalho para deixar a sexta-feira mais cedo. Hoje, lembro-me antes que tenho que ir a casa, e trocar de roupa - e levo outra? e casaco? e o calçado? E hoje enrolo muito mais, é bem verdade. Mas, apesar de tudo, não deixo de fazer. 

Não me entendam mal, há coisas de que nunca me irei esquecer, e que me fazem sorrir só de lembrar. Não quero, porém, voltar atrás. Este ano, o Marés Vivas foi no sofá. Vi os meus concertos preferidos, através da transmissão pelo Facebook que fizeram, e fui dormir quando quis, sem quaisquer preocupações. Para a próxima, estou lá ao vivo, é certo, que em casa nunca é a mesma coisa, e não deixei de querer respirar os ares do momento. Mas não é preciso fugir a meio da noite, ou voltar sem dormir, de forma violenta. Para a próxima, que já sei, porque todos os anos quero ir, e todos os anos é a mesma história, tiro férias nesta altura e, se for preciso, até aproveito mais do que antes aproveitava. Para a próxima, posso ignorar uma partida repentina, e sem avisar ninguém, para a outra ponta do país. Porque, em compensação, consigo ir a Londres, Madrid, Barcelona ou Oviedo, como fiz em 2012. As borboletas no estômago já não são pelos às escondidas, mas a excitação por novas quebras à rotina mantêm-se. E elas podem ser pensadas sim, e não há mal nenhum nisso, pelo contrário. Mas nem sempre é possível. Nem sempre é possível para mim. Porque, a verdade, é que ainda há resquícios no meu organismo das decisões de última hora. E está tudo bem na mesma. Já não vou como se fosse louca, mas fico dessa forma: desmarco nos minutos finais e fico a gozar os meus fins de tarde no Chiado ou os jantares para a família, namorado, tias, primas e o que mais vier. E não me importo, nem um bocadinho.
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