Eu e o meu carro - O regresso


Eu juro que aquele carro está embruxado. Está ele ou eu, mas vamos partir do pressuposto que eu não sou para aqui chamada. Até porque, vendo bem, de estranho só tenho uns soluços esquisitos que assustam meio mundo e o meu olho direito que deita vapor de água. Nada que aponte para que algo de errado se passe. É por isso que a culpa é sempre do carro - e geralmente até faz sentido que assim seja.

Já ficou sem travões em descidas (escrevi sobre isso aqui no blogue, mas estou cansada para procurar). Já usou o painel de controle como árvore de natal e permitiu-se piscar as luzinhas como se tivesse piada. Já me trancou lá dentro, a última vez ainda esta semana. A porta do condutor quase nunca funciona, o que me faz parecer muito mais fixe por entrar pelo lugar do pendura ou, em desespero, tentar o porta-bagagens. Isto, claro, quando o porta-bagagens abre. Já me engoliu objectos - eu não estou a brincar, garanto. Não consigo dizer isto de uma forma que pareça menos gozona, mas o banco do pendura engole-me os objectos que lá coloco: primeiro foram os óculos, dias depois foi a caixa. Ficou com o conjunto completo e eu, mais uma vez, com a carteira vazia e um ar de parva na cara. Eu explico às pessoas que tinha os óculos na cara (coisa que eu faço religiosamente enquanto conduzo e largo no momento em que o motor pára). Desliguei o carro e deixei os óculos no banco por uns segundos. Quando agarrei na mala para sair e correr para as aulas, e os procurei para os levar, tinham desaparecido. Não procurei em detalhe logo, estava com pressa, mas quando voltei verifiquei canto a canto e, até agora, absolutamente nada.

Hoje acordei com a sensação de sexta-feira, de poder tomar o pequeno-almoço na sala com calma, espreitar a Ally McBeal e demorar-me um pouco mais. Tendo a acordar mais cedo à sexta para o poder fazer, na prática até descanso menos, mas os minutos que passo a poder perder para mandriar sabem-me pela vida e lembram-me que já só faltam umas horas para abrandar o ritmo. É claro que panhonhice bem jogada dá asneira. Saí porta fora e esqueci-me das chaves do meu carro. Este foi o primeiro sinal.

Voltei atrás, trouxe as chaves e esqueci-me do passe para o metro. Cheguei ao sr. roubado, estacionei e fiz-me à estação. Quase lá, vi que me faltava algo e voltei para trás: ainda tinha tempo de ir de carro para Lisboa e fazer o caminho para o trabalho a pé. Começo a andar mais rápido para o carro. Pelo caminho de volta, contudo, lembro-me que a minha irmã estará também no sr. roubado dentro de 15 a 20 minutos. A mesma que eu passei a noite anterior a procurar convencer a vir comigo de boleia, já que a diferença horária era mínima e escusava o pai, feito amoroso, de a ir levar. Não quis. Este foi o ante-sinal. Pedi-lhe ajuda com o passe, desligou-me o telefone na cara. E este foi o segundo sinal. Liguei para o meu pai ignorando os macaquinhos na cabeça que me diziam para me fazer à estrada antes que fosse meio-dia e eu continuasse à espera de um passe. O pai disse que sim, que o levava, mas que estavam atrasados e que eu teria que esperar. Este foi o terceiro sinal. Eu podia ter voltado para trás, pois que podia e tudo indicava que o devesse fazer desde o dia anterior. Se a minha irmã tivesse simplesmente vindo comigo, teria seguido directamente para Lisboa por não ter outra alternativa. Em vez disso, deu-me para a sovinice e sentido prático e achei que faria melhor figura quieta e à espera.

Quase 12 horas depois do abandono matinal,  feliz da vida por ser fim-de-semana e poder ir para casa enfiar-me na cama e esquecer o nariz entupido, a tosse, os espirros e os eteceteras, encontro o meu carro, ali no mesmo sítio, sem matrícula. À primeira ainda passou, vi o carro e continuei em frente como se não fosse comigo. Era muito mais provável ter deixado o carro num sítio diferente do que encontrá-lo sem a tira branca. Não passaram muitos segundos até perceber que sim, que aquele era o meu focu (sem o "s" senhores, o "s" já caiu há uns anos), único e igual a si. Primeiro pensamento de Miss C.: "queres ver que eu bati com o carro hoje de manhã, deixei cair a matrícula e nem dei conta? Agora vou contar isto ao pai como?". Sou uma pessoa extremamente atenta, como é possível deduzir. Graças a um rasgo de lucidez, espreitei a traseira e percebi que talvez a culpa não fosse minha. A matrícula estava caída no chão (ufa, que alívio!), sem um único número (sem comentários).

1.º telefonema:
Pai, roubaram-me as matrículas.
Roubaram-te as matrículas?
Sim, bla bla bla.
Então olha, vem andando devagar e amanhã tenho que te ir comprar umas novas.
Mas não tenho que chamar a polícia? Isto costuma ser para fazerem assaltos.
Pois, talvez, não sei... Vem vindo que vamos à polícia a seguir.

2.º telefonema:
Olha, oh Cherry, se um polícia te mandar parar pelo caminho e te perguntar pelas matrículas tu dizes: "Ai a sério sr. polícia? Nem tinha reparado! Vim agora do trabalho e entrei no carro e nem vi".
....
Quer dizer, ou então telefona para aquele polícia que tu conheces e pergunta-lhe o que deves fazer.

3.º telefonema (já a sair do parque de estacionamento):
Bla, bla, bla estou sem matrículas.
Fod*-*#! Não saias daí, tens de chamar a PSP da zona e participar.

4.º telefonema (de volta ao ponto de partida)
Olá namorado, nem imaginas...roubaram-me as matrículas, agora estou aqui à espera da polícia.
Roubaram-te o quê?
As matrículas.
Onde?
Onde costumo deixar todos os dias.
Enquanto estavas no trabalho?
Sim.
Ahahahahahahaha.

E é isto a minha vida.
Deixem-me só ir babar a almofada que amanhã, com mais calma, pode ser que haja direito a parte II. É que na esquadra é que aquilo foi giro à brava.
© POST-IT AMARELO 2014 | TODOS OS DIREIROS RESERVADOS

PARA MAIS INFORMAÇÕES:
♥ dopostit@gmail.com
♥ https://www.facebook.com/postit.amarelo
imagem-logo