'Miúda' de 13. Fala, chora e chove. Obrigada.


                                                                                       Kate Beckinsale, Pearl Harbor (2001)

Hoje acordei e o dia estava igual.

Hoje acordei e não pensei que algo de importante pudesse acontecer. Não me lembrei das coisas que tinha combinado, dos encontros que tinha planeado e da pessoa que tinha à minha espera. Não acreditei, nem por uma fracção de segundo, que algo pudesse ser diferente de todos os outros dias. Hoje acordei e notei que o tempo estava diferente. Acordei com a irmã do meio a fazer barulho e com o mau humor de quem é arrastado da cama antes do despertador tocar. Acordei sem saber em que dia estava a acordar, sem pensar no porquê de o fazer.

Vivemos fechados numa bolha, na nossa bolha de amores, amigos, família e carreira. Na bolha que construímos, cuidamos e preservamos por saber ser nossa e o que de melhor temos. Raramente nos apercebemos de que, ao fim do dia, não passa de água com sabão. Erguemos uma parede invisível atrás de um sonho de felicidade alcançável no seu interior; num espaço em que apenas nós, aqueles que nos são queridos e os que nos são quotidianamente próximos interessam. Mas há muito mais, há muito mais lá fora. Só nos esquecemos de continuar a olhar.

Nove anos volvidos e um sorriso do passado. Foi o que bastou, foi o que foi preciso para relembrar os anos nos quais conseguia ver e distinguir as diferentes bolhas. Ele visitou-me e explicou-me que nunca deixou de espreitar para dentro da minha. Ele lembrou-me que eu tinha deixado de o fazer.

É difícil perceber, interiorizar e aceitar que somos capazes de mudar a vida de uma alguém sem fazer a mais pequena ideia. E é inacreditável como isso nos marca; como um olhar de gratidão e de sinceridade faz toda a diferença. Hoje foi posto em palavras um sentimento, com toda a coragem e honestidade que a acção existe. Hoje senti o coração transbordar. Senti-me irrequieta e inquieta. Fiquei zonza no depois. Falou-se de amores platónicos, de paixões alimentadas por uma recordação de criança, de esperança, alento e inspiração. E tudo o que eu ouvi foi que alguém que eu conheci, alguém com quem partilhei parte do meu percurso escolar, viveu e construiu a sua vida com base em pequenos momentos, pequenos gestos e pequenas palavras. E percebi que para ele não tinham sido pequenos. E não compreendi como é que num mesmo planeta, num mesmo país e numa mesma cidade a três ruas de distância, nunca nos tenhamos voltado a cruzar. Enchi a cabeça de "e's" e "ses". Não os mesmo que por muito tempo ele teve em mente. Todavia, "e's" e "ses" repletos de carinho, gratidão e muito, muito respeito. Porque hoje disseram-me das coisas mais bonitas que ouvi em toda a minha vida. Senti o olhar fixo e verdadeiro mesmo quando ouvi o aperto que lhe passava pela garganta e a saudade, nostalgia e amor que um dia lhe tinham passado pelo coração. Ouvi a minha voz tremer e não consegui dizer metade do que queria, não a alguém que já não conheço, a alguém com quem não estava por mais de quinze minutos há nove anos. E é muito tempo. É muito tempo em que eu falhei e não respondi às cartas, aos bilhetes, às flores, aos retratos, aos e-mails e aos sinais de que ele ainda estava por perto e à espera de uma resposta. É muito tempo para ter vivido fechada na minha bolha, achando que por não ver para fora, nada mais existia. Acreditando que por não o ver, não o magoava. Sentindo que, por não sentir, por não interferir com a minha vida, também não iria ter relevância para a dele. Mas teve. Alimentou uma esperança que se diz responsável por uma inspiração que o guiou e levou a ser mais e melhor, a ser digno da lembrança que tinha e um dia esperava poder vir a agarrar. Foi hoje o dia. 

No fim choveu, choveu muito e algo se renovou. No fim, ele foi para casa a pé, sob cada uma das grossas gotas de água que insistia em cair. No fim, chamou-me 'miúda' e deixou-me com uma rosa, um origami e um 'papiro' em branco. Explicou-me o seu simbolismo e eu jurei, em silêncio, guardá-los para mim, junto a mim. No fim, sem saber, deixou-me mudada. 
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