Dia de reis

Tenho vertigens. Desde de que me lembro. Pelo menos, chamo-lhes assim, à falta de melhor. O que eu tenho, na realidade, é um aperto no peito e um frio no estômago, sobretudo junto aos corrimões de varandas. Nem precisam de ser muito altas, desde que não tenham nada por baixo. Mas essa nem é a parte má. O que me faz, quase sempre, ter tendência para me curvar - houve fases em que chegava mesmo a agachar-me - é a visão imediata que eu tenho das mãos pousadas sobre o corrimão enquanto o chão se desfaz em ruínas, mesmo por baixo dos meus pés. Ou os cabos dos teleféricos que se soltam. Ou das rodas das diversões que descarrilam nas voltas mais altas. E sinto como se tudo isso estivesse realmente a acontecer, de tal forma que chego a ouvir sons. É por isso que, não acreditando, sei que se acreditasse teria a certeza de ter morrido, numa outra vida, num sítio à beirinha, que me atirou para o vazio. É uma trauma sem motivo, eu bem sei. Mas é a minha mania, a minha esquisitice e sempre que a puder evitar, evito, que aquela história de enfrentar os medos só fica bem nos livros.

Aqui há uns anos, na Eurodisney, e já farta de ficar nas filas de espera enquanto as duas amigas que estavam comigo se divertiam nas montanhas russas mais assustadoras, deixei-me levar pela conversa delas. Que quando experimentasse me passava, que ia gostar, que era espetacular. E fui. Para a tartaruga do Nemo. Elas ficaram na parte da frente da carapaça e eu comecei a viagem nos carris, já de costas voltadas ao divertimento. Foi horrível. Quando começou a descer, numa gruta escura, eu desci de virada para trás o tempo todo, sem ninguém ao lado e a achar que ia cair, a qualquer momento. Aguentei lá dentro estoicamente - com alguns gritos pelo meio, é verdade, mas a fazer-me de forte. Gritos que não eram de loucura ou de adrenalina, mas de puro pânico. Disse várias vezes coisas como "não morras, não morras, não morras" ou "não quero morrer". Saí e desatei a chorar, feita bebé. Riam-se que eu permito, são figuras muito, muito tristes. Com isto julguei, contudo, ter encerrado o capitulo da minha vida em que insistia numa coisa que não resulta...

...até ter batido com o carro, na véspera de Natal, depois de um despiste, sozinha numa estrada, sem que nada o fizesse prever. Conduzi na altura, para o tirar do meio da estrada, antes que viesse um outro e a história acabasse mal. Conduzi dois dias depois, na maior. Conduzi à noite, para levar os irmãos a dar uma volta. E ficou por ai, porque as férias vieram e eu pensei que, com elas, viesse o esquecimento. Voltou, porém, a chover, e na noite anterior ao regresso ao trabalho eu não consegui dormir. Ouvi a tempestade durante toda a madrugada, desejando que parasse no momento em que o sol nascesse. Não parou, mas abrandou e, mais uma vez, conduzi. A sentir os pequenos toques no travão na minha garganta, no peito e no estômago, como se estivesse à beira de um precipício. E, tal como nesses casos, o pior não é essa parte. Nem sequer aquela em que imagino que todas as zonas mais escuras da estrada têm água, mesmo quando estão secas. Nem quando em todas as curvas sinto o carro fugir, quando ele nem se move um milímetro da sua rota. O pior, mais uma vez, são todos os flashes que tenho, que começaram com memórias e evoluíram para cenários que eu nunca vivi. Vejo acidentes o tempo todo. Com detalhe. Com cheiro. Sem que nada me distraia. Sem que consiga pensar noutra coisa, ouvir rádio ou cantar.

A diferença, desta vez, é que com a mesma força de todos esses momentos vem uma vontade inexplicável de reproduzir a cena do crime. De saber que, se alguma entidade me pudesse garantir que não me aleijasse e que o carro permanecesse intocável, já tinha enveredado pelo caminho daquele dia, pelo qual deixei de passar. De saber que, se fosse possível, gostaria que tudo acontecesse exatamente como aconteceu, mas que desta vez eu conseguisse controlar o carro. Porque há um sentimento de fracasso, de querer refazer as coisas e de revisão, constante, nestes dias em que volta a chover. E eu nunca revejo os momentos em que me sinto cair de uma varanda, nem tenho vontade de os enfrentar. Não que tenha particular alegria em conduzir nestes dias, não tenho. Mas vou conduzindo, porque este não é um medo a ser enfrentado para dizer que sim. Este é um medo que já foi um prazer. E dessas coisas sente-se falta.

Para já, a condução é ainda muito consciente. Demasiado para ser saudável. Mas é também tranquila, segura e com muita, muita paciência. Um dia vão passar. Estas vertigens de andar de carro. E enquanto não passam, uma coisa que ajuda bastante é escrever. Não agora, no depois, mas no momento, quando dito este texto enquanto avanço na viagem.
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